Sônia Regina Ribas Timi
Perita Contábil e Documentoscópica
Mestre em Ciências Contábeis
Curitiba, 2025
Resumo
A Resolução CNJ nº 615/2025 institui um marco normativo para o desenvolvimento, a governança e o uso responsável de soluções de inteligência artificial (IA) no Poder Judiciário, revogando a Resolução CNJ nº 332/2020 e elevando as exigências de transparência, supervisão humana, auditabilidade e segurança da informação.
Em chave tradicional — preservando a centralidade do devido processo legal, do contraditório e da motivação —, examina-se a 615/2025 quanto às suas diretrizes e reflexos operacionais na perícia contábil e na documentoscopia.
A literatura de 2025 converge no reconhecimento do papel estruturante do novo marco para mitigar vieses, assegurar governança algorítmica e fortalecer a cadeia de custódia digital da prova. Defende-se a adoção de protocolos conservadores: delimitação estrita de finalidades, registros de trilha de auditoria, documentação metodológica, avaliação de impacto e explicabilidade verificável, de modo a resguardar a confiabilidade da prova técnica e a neutralidade informacional do laudo pericial.
Palavras-chave: Resolução CNJ 615/2025; governança algorítmica; supervisão humana; perícia contábil; documentoscopia; LGPD; devido processo.
1. Introdução
A tradição processual brasileira — consolidada em princípios como legalidade, devido processo, contraditório, publicidade e motivação — estabelece que a decisão jurisdicional deve apoiar-se em prova tecnicamente idônea e controlável.
O avanço das técnicas de IA, especialmente de modelos de linguagem de larga escala (LLMs) e da IA generativa, exigiu resposta normativa específica para preservar tais garantias no contexto digital. Nesse cenário, a Resolução CNJ nº 615/2025 fixa normas para desenvolvimento, governança, auditoria, monitoramento e uso responsável de IA no Judiciário, com objetivo explícito de eficiência sem renunciar à ética, transparência e proteção de direitos fundamentais.
Este estudo oferece uma leitura conservadora da 615/2025, avaliando seus fundamentos e efeitos sobre as rotinas da perícia contábil e da documentoscopia, cuja fidedignidade depende de reprodutibilidade, neutralidade e cadeia de custódia — valores historicamente caros ao ofício pericial.
2. Marco normativo e evolução
A Resolução CNJ nº 615/2025 substitui e supera a Resolução nº 332/2020, reconhecendo os riscos próprios das IAs generativas (privacidade, segurança, vieses, soberania e fundamentação) e reforçando a supervisão humana significativa em todas as fases do ciclo de vida dos sistemas.
O art. 1º fixa o escopo (desenvolvimento, governança, auditoria, monitoramento e uso), enquanto os arts. 2º e 3º consagram fundamentos e princípios como proteção de dados, explicabilidade, contestabilidade, auditabilidade e segurança jurídica.
A doutrina de 2025 reconhece que o novo diploma incorpora lições dos cinco anos de experiências com IA no Judiciário, revoga a Resolução nº 332/2020 e eleva padrões de transparência e segurança, incluindo classificação de risco e mecanismos concretos de governança e prestação de contas.
3. Fundamentos, princípios e definições centrais
A Resolução afirma:
i) respeito a direitos fundamentais e valores democráticos;
ii) supervisão humana em todas as etapas do ciclo de vida;
iii) transparência, explicabilidade e contestabilidade;
iv) curadoria e rastreabilidade de dados, preferencialmente governamentais;
v) segurança da informação e cibernética;
vi) auditorias e relatórios periódicos;
vii) mecanismos de monitoramento contínuo e comunicação de eventos adversos.
Define ainda IA, ciclo de vida e instrumentos de infraestrutura como o Sinapses, voltado a armazenar, testar e auditar modelos.
A literatura acadêmica de 2025 sublinha que a Resolução responde a dois eixos principais:
a) mitigação de viés e discriminação algorítmica;
b) explicabilidade suficiente para sustentar contraditório técnico e motivação racional — condições de legitimidade de qualquer apoio automatizado à decisão.
4. Repercussões para a perícia contábil e a documentoscopia
A perícia, enquanto meio técnico de prova, exige neutralidade, rastreabilidade dos procedimentos e reprodutibilidade dos resultados. A 615/2025 não autoriza a substituição do juízo técnico humano por saídas algorítmicas opacas; ao contrário, determina supervisão humana efetiva e periódica, com trilhas de auditoria e relatórios que comprovem conformidade com a governança de dados e a proteção da propriedade intelectual.
Na perícia contábil, usos conservadores de IA incluem:
- triagem e classificação documental;
- extração de campos de notas e contratos;
- sumarização de peças volumosas;
- apoio à conferência de cálculos repetitivos.
Sempre com validação humana, parametrização explícita, registro de versões de modelos e testes de consistência.
Na documentoscopia/grafoscopia, a IA pode auxiliar na pré-triagem de amostras (segmentação, comparação morfométrica elementar, organização de bancos de padrões), sem suplantar a análise grafocinética e os exames instrumentais clássicos.
A literatura de governança recomenda documentação técnico-jurídica para permitir contraditório: datasets, métricas de desempenho, versões, limitações conhecidas, políticas de atualização e logs.
4.1 Cadeia de custódia digital
A 615/2025 impõe segurança da informação, curadoria de dados rastreáveis e auditáveis, monitoramento e relatórios periódicos — elementos que dialogam diretamente com a cadeia de custódia digital da prova: controle de integridade, versionamento de bases, gestão de acessos e documentação de fluxos (entrada–processamento–saída).
4.2 Explicabilidade e contraditório
A Resolução, ao exigir explicabilidade, contestabilidade e auditabilidade, cria condições para que peritos e partes examinem criticamente saídas algorítmicas e contraditem-nas quando necessário.
Relatórios compreensíveis, acompanhados de métricas e limitações, são imprescindíveis para compatibilizar IA com motivação judicial.
4.3 Viés e igualdade de tratamento
O diploma reconhece riscos de vieses e parcialidades, determinando gestão de riscos e supervisão com intensidade proporcional ao grau de automação e impacto da solução. Pesquisas recentes, focadas no acesso à justiça e na não discriminação, reforçam a necessidade de auditorias independentes e controle público.
5. Metodologia proposta (protocolo conservador para o perito)
Propõe-se um protocolo de quatro etapas, compatível com a 615/2025 e com boas práticas de governança:
- Delimitação e base legal: definir finalidade de uso (triagem, extração, sumarização), licitude e pertinência dos dados; mapear riscos (viés, privacidade, segurança).
- Planejamento e governança: selecionar modelos e versões; definir métricas de desempenho e de viés; estabelecer logs, política de monitoramento contínuo e relatórios periódicos; prever avaliação de impacto quando cabível.
- Execução assistida por IA: aplicar estritamente às tarefas acessórias; documentar parâmetros; validar manualmente amostras críticas; preservar reprodutibilidade de cálculos (scripts, fórmulas, evidências) e de medições grafoscópicas.
- Relato pericial: descrever procedimentos, controles de qualidade, limitações do modelo, métricas observadas, trilha de auditoria e referências normativas aplicáveis; anexar evidências suficientes para permitir reprodução independente.
6. Discussão
A Resolução 615/2025 consolida um paradigma de governança algorítmica com ênfase na supervisão humana, explicabilidade e prestação de contas, respondendo ao crescimento da IA generativa e às assimetrias informacionais por ela produzidas.
Comentários técnicos e análises setoriais destacam que o diploma revoga a Resolução nº 332/2020 e explicita obrigações de auditoria, rastreabilidade e segurança — pontos que dialogam com o ethos clássico da prova técnica (neutralidade e verificabilidade).
No âmbito pericial, a Resolução resguarda o papel do especialista ao exigir supervisão humana em todo o ciclo de vida e ao condicionar o uso de IA à transparência e contestabilidade. O risco de automatismo decisório é mitigado quando o uso de IA permanece instrumental e documentado; em contrapartida, a ausência de documentação, métricas e logs compromete o contraditório técnico e ameaça a validade epistêmica do laudo.
7. Conclusões
i) A Resolução CNJ nº 615/2025 representa um marco regulatório garantístico, que preserva a tradição do processo justo ao disciplinar o uso de IA com fundamentos e princípios de direitos fundamentais, explicabilidade, contestabilidade, auditabilidade e segurança.
ii) Longe de substituir o perito, a 615/2025 reafirma a centralidade do juízo técnico humano, exigindo supervisão efetiva e registros auditáveis.
iii) Para a perícia contábil e a documentoscopia, a Resolução oferece base normativa para consolidar protocolos de cadeia de custódia digital, métricas e logs, avaliação de impacto e relatórios periódicos, de modo a proteger a confiabilidade da prova e a neutralidade informacional do laudo.
iv) A literatura de 2025 corrobora tais salvaguardas e recomenda monitoramento contínuo e auditorias independentes em aplicações de maior risco.
Referências
BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 615, de 11 de março de 2025. Estabelece diretrizes para o desenvolvimento, utilização e governança de soluções de IA no Poder Judiciário. Brasília: CNJ, 2025.
GABRIEL, A. de Paiva. Inteligência artificial e a Resolução CNJ nº 615/2025. Revista da EMERJ, 2025.
MOZETIC, V. A. Inteligência artificial no Judiciário brasileiro: salvaguardas, riscos e governança. Revista do TRF3, 2025.
PRETTO, A. B. O. Inteligência Artificial no Judiciário: análise de desafios e oportunidades (Projeto LIIARES). Revista DCS, 2025.
ALMEIDA, L. F. L. A inteligência artificial como ferramenta de apoio à decisão judicial. Derecho y Cambio Social, 2025.
SOUSA, A. C. O.; FURTADO, S. N. Acesso efetivo à justiça e discriminação algorítmica: o uso de IA pelo Poder Judiciário. Revista do CEJUR/TJSC, 2025.
CNJ. Resolução nº 615 de 11/03/2025 (Texto oficial). Brasília: CNJ, 2025.